Pele para transplantes e testes farmacológicos
Autoras: Joana D’Arc Félix de Sousa e Ângela Ferreira de Oliveira
Dentre as diversas pesquisas realizadas na área de bioengenharia de tecidos, a criação in vitro de tecidos vivos torna-se uma das mais promissoras formas de atuação científica. Neste caminho, cada vez mais têm sido descritos novos substitutos cutâneos para o tratamento de grandes lesões da pele. O consenso em relação à importância da oclusão precoce de áreas cruentas motivou o interesse por materiais sintéticos ou biológicos a serem utilizados como substitutos cutâneos, entre eles: autoenxertos, aloenxertos de pele e curativos biossintéticos (BELL et al, 1981).
Infelizmente, até o momento, os métodos para cultura de tecidos como os usados em transplantes de peles são muito caros, mas não há dúvidas de que os enxertos autógenos perduram como a alternativa de escolha para o fechamento definitivo de áreas cruentas. Porém, alguns pacientes apresentam escassez de áreas doadoras de pele e o problema da escassez de áreas doadoras nunca foi totalmente solucionado (TANNER et al, 1964).
Nesta pesquisa, a bioengenharia de tecidos permitiu transformar tecidos suínos em materiais compatíveis como organismo humano. A derme suína foi escolhida porque sua composição é 78% compatível com a derme humana. Sabe-se hoje que, por sua semelhança com o homem, várias partes do organismo dos suínos podem ser utilizadas em medicina humana. Na medicina atual, a pele dos suínos pode ser usada em transplantes temporários no homem, nos casos de queimaduras de terceiro grau, que causam grandes descontinuidades de sua pele. Infelizmente ela não serve para transplantes definitivos, devido à sua rejeição (ROPPA, 2012).
Com o objetivo de tornar os xenotransplantes de peles temporários em xenotransplantes de peles definitivos,desenvolvemos uma técnica de purificação da pele suína, para que uma vez transplantada, elimine os problemas de rejeição sem colocar em risco o sistema imunológico do paciente transplantado. A pele resultante pode ser utilizada em transplantes definitivos de peles e em testes farmacológicos.
Demonstrar a eficácia desse tipo de tecnologia, bem como sua viabilidade econômica, é particularmente importante no contexto brasileiro, porque os bancos de pele, com tecidos provenientes de doadores humanos são raros, estando presentes apenas em São Paulo, Porto Alegre, Curitiba e Recife. Em Santa Maria/RS essa escassez foi um problema, devido às várias vítimas afetadas por queimaduras graves em um incêndio numa casa de shows que também matou centenas de jovens no início de 2013.
METODOLOGIA, RESULTADOS E DISCUSSÕES
A. Colágeno Gelificado Sustentável(Gelatina).
É extraído de serragens e aparas de wet-blue (resíduos sólidos classe I de curtumes), Figura 1 (FÉLIX DE SOUSA, 2005).
Imagens fornecidas pelas autoras
Figura 1 - Extração de colágeno gelificado sustentável, sulfato de cromo III sustentável e/ou hidróxido de cromo sustentável de serragens e aparas wet-blue (FÉLIX DE SOUSA, 2005)
Industrialmente o colágeno é extraído de carnaças (resíduos sólidos de curtumes, isentos de metais e não tóxicos). No Brasil, apenas quatro empresas realizam este processo, fazendo com que o colágeno tenha um alto valor comercial.
O colágeno gelificado sustentável (gelatina), Figura 1, foi analisado quimicamente e espectroscopicamente, evidenciando que o mesmo foi extraído com 100% de pureza. Neste processo inédito de reaproveitamento, o valor do colágeno gelificado sustentável (gelatina) em sólido ficou em R$ 1,45/kg, enquanto no mercado o mesmo é comercializado a R$ 53,00/kg. O valor do sulfato de cromo III sustentável ficou em R$ 0,45/kg e do hidróxido de cromo sustentável em R$ 0,64/kg.
Com o reaproveitamento de serragens e aparas de wet-blue haverá um ganho para o setor coureiro, pois como emprego dos processos de reaproveitamento as empresas ficarão livres do passivo ambiental, dos custos de transporte e de deposição de seus resíduos, tornando a indústria mais competitiva.
B. Matriz de pele humana artificial
Tradicionalmente, as peles suínas são utilizadas na culinária. Apenas uma pequena parcela é beneficiada em curtumes. Nesta pesquisa, de forma inédita e revolucionária, transformamos peles suínas em peles humanas artificiais com 100% de compatibilidade, conforme ilustrado nas Figuras 2 e 3.
Figura 2 - Processo de purificação da pele suína para a obtenção de uma matriz limpa
Figura 3 - Processos de reposição de colágeno e fechamento dos poros da matriz limpa (pele suína purificada) com colágeno gelificado sustentável (gelatina) para obtenção de uma matriz de pele humana
O processo de transformação de peles suínas em pele humana artificial ocorre em duas etapas.
Na primeira, realiza-se a purificação da pele suína para a obtenção de uma matriz limpa (pele suína purificada), Figura 2. Nesse processo de purificação elimina-se todo o material genético associado ao tecido suíno (os materiais interfibrilares, as células, os pelos e as gorduras) (FÉLIX DE SOUSA, 2002). Após essa etapa, a pele suína purificada resultante apresenta apenas duas camadas: epiderme e derme.
Na segunda etapa realiza-se a reposição do colágeno perdido pela pele suína durante a realização dos processos de purificação, além do fechamento dos poros, com colágeno gelificado sustentável (gelatina) para a obtenção de uma matriz de pele humana artificial, Figura 3. Os marcadores biológicos certificaram que as matrizes de pele humana artificial estão 100% compatíveis com a pele humana natural.
O valor de uma matriz de pele humana artificial medindo 1,5 metros ficou em R$ 84,52, mostrando que a eficácia desse tipo de tecnologia e sua viabilidade econômica são particularmente importantes no contexto brasileiro.
O colágeno gelificado sustentável contribui para que a matriz de pele humana artificial, uma vez transplantada, elimine os problemas de rejeição sem colocar em risco o sistema imunológico do paciente transplantado, além de permitir que essa matriz de pele humana artificial seja capaz de reproduzir os mesmos tecidos biológicos e manter conservadas as principais características biomecânicas e estruturais da pele humana natural.
A pele humana artificial resultante tem o poder de recuperar as funcionalidades da pele humana natural porque ela é um modelo que mimetiza a pele humana com toda a sua estrutura de epiderme e derme. Ela permanecerá para sempre no paciente transplantado porque servirá de estrutura de apoio para que seu organismo reconstrua com eficácia a área lesada. Além do emprego em transplantes de pele, a matriz de pele humana artificial também poderá ser utilizada em queimados, para recuperar a pele de pessoas afetadas por tumores, hérnias ou feridas de difícil cicatrização, no desenvolvimento de novas estratégias de tratamento de patologias dermatológicas e para testar produtos cosméticos e farmacêuticos a um custo mais baixo e sem o uso de animais. Sabe-se que, desde o início de 2009, uma diretriz da Comunidade Europeia, Índia e Israel indica que nenhum produto cosmético poderá ser avaliado quanto à segurança e eficácia em animais de laboratório.
CONCLUSÃO
A aplicação dos princípios da química verde na otimização de técnicas de produção mais limpa e redução de impactos ambientais para o desenvolvimento de processos de extração de colágeno gelificado sustentável (gelatina) a partir de serragens e aparas de wet-blue (resíduos sólidos classe I de curtumes), levou a uma grande redução dos custos dos processos de transformação de peles suínas em matrizes de pele humana artificial, além de oferecer uma destinação mais adequada a esses resíduos tóxicos, cancerígenos e mutagênicos, mostrando que é possível desenvolver uma relação de simbiose industrial entre o setor coureiro e o setor da saúde.
As tecnologias desenvolvidas apresentaram uma relação custo-benefício que contemplaram ótimas qualidades aliadas a baixos custos.
Fonte: www.crq4.org.br